1 – A conduta culposa – fato antecedente


O erro médico pode ser conceituado como um ato culposo, praticado em razão do exercício profissional da medicina, cuja consequência é a ocorrência de danos indenizáveis, ao paciente (tomador do serviço, ou vítima), de natureza moral ou patrimonial.


A conceituação apresentada muito se assemelha à descrição de ato ilícito disposta no art. 186 do Código Civil Brasileiro: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”


Em sentido convergente, o art. 1º, da Resolução nº 2.217/18, do Conselho Federal de Medicina (CFBM), dispõe que é vedado ao médico “causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.”


Entretanto, algumas diferenças devem do ato ilícito stricto sensu e o erro médico devem ser apontadas. A primeira delas é que a imperícia não é destacada no Código Civil como elemento caracterizador do ato ilícito civil indenizável; enquanto que, na Resolução do CFBM está expressamente prevista.


A outra, apontada por grande parte da doutrina, consiste na tese de que o erro médico é um dano provocado por uma ação ou omissão do médico, resultante de uma conduta não dolosa. Vale dizer, no erro médico, o evento danoso seria consequência de um ato praticado sem a finalidade e o propósito de causar dano (por isso mesmo seria erro: conduta não deliberada). Note-se que o art. 1º da Resolução nº 2.217/18, do CFBM fala apenas em imperícia, imprudência e negligência, sem descrever o dolo.


Assim, a princípio, o evento danoso decorrente do exercício da medicina, para ser caracterizado como erro médico, deve decorrer de um ato positivo (imprudência) ou negativo (negligência), que não observa o cuidado razoável e esperado na prestação de determinado serviço; ou, simplesmente decorre de uma conduta perpetrada por alguém que não possui aptidão, conhecimento ou técnica suficiente para atuação (imperícia).


Em que pese a conceituação apresentada pelo ato normativo do CFBM, diversos julgados reconhecendo a possibilidade de caracterização do erro médico em razão de uma conduta dolosa – especificamente, na hipótese de dolo eventual.


Cumpre dizer que o dolo eventual é um também uma forma intencional de prática da conduta, apesar de o resultado-dano não ter sido perquirido. Isto porque, a intencionalidade está condita na prática da conduta e não no dano: no dolo eventual, o agente intencionalmente pratica (ou deixa de praticar) a conduta assumindo os resultados de sua ação, inclusive o dano. Diz-se, comumente, que no dolo eventual o agente não tem a intenção de causar o dano, mas assumiu os riscos em se concretizando.


Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus nª 92.304

2. Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente. Na realidade, o dolo eventual não poderia ser descartado ou julgado inadmissível na fase do iudicium accusationis. 5. Em tese, o único médico plantonista, procurado mais de uma vez durante o exercício de sua atividade profissional na unidade de saúde, cientificado da gravidade da doença apresentada pelo paciente que lhe é apresentado (com risco de vida), ao se recusar a atendê-lo, determinando o retorno para casa, sem ao menos ministrar qualquer atendimento ou tratamento, pode haver deixado de impedir a ocorrência da morte da vítima, sendo tal conduta omissiva penalmente relevante devido à sua condição de garante.


Há, portanto, um ato que não necessariamente é praticado com o intuito de lesar, mas que é praticado de forma consciente e de forma perigosa, provavelmente contrário a direito, e com a assumpção dos riscos de produzir a lesão (a consciência da conduta, aliás, é essencial para diferenciá-la da negligência e da imprudência, que são caracterizadas ainda que o agende não tenha plena consciência do vício contido em sua conduta).

2. A relação de consumo “médico-paciente”


Pois bem. Bem observada essa conceituação, é preciso também esclarecer que o paciente (vítima) é o tomador final de um serviço (art. 2º, do Código de Defesa do Consumidor); por sua vez, o médico um profissional liberal fornecedor de um serviço. Nesta toada, a relação estabelecida entre médico é paciente é naturalmente uma relação jurídica de consumo.


Via regra, a responsabilidade dos fornecedores numa relação consumerista é de natureza objetiva. Isto é, o “fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos” (art. 14, caput, do CDC).


Nada obstante, a responsabilidade dos profissionais liberais, numa relação de consumo, deve ser apurada mediante verificação de culpa – o que, no caso do erro médico, implica dizer que deve ser apurada mediante dolo eventual, negligência, imprudência ou imperícia (art. 14, §2ª, do CDC).

3. O dano emergente e o lucro cessante – fatos consequentes


De mais a mais, não existe erro médico sem que da conduta culposa resulte um dano indenizável. O dano é elemento sine qua non para qualquer determinação da responsabilidade civil, razão pela qual a sua ausência inviabiliza a imputação da responsabilidade civil. Mais: o erro médico é, acima de tudo, um dano, isto é, uma diminuição ilícita à esfera jurídica do consumidor (paciente, ou vítima).


O dano juridicamente relevante é entendido como a interferência indevida na esfera jurídica de outrem que cause uma lesão, prejuízo subtração ou diminuição (neminen laedere) a um interesse juridicamente protegido. Não basta que o prejuízo recaia sobre mero interesse, é preciso que o interesse esteja acobertado pelo manto do direito subjetivo e contenha proteção jurídica pré-determinada.


Importante esclarecer que nem todo prejuízo decorrente de uma relação entre médico e paciente (prestador de serviços e consumidor) caracteriza um erro médico; bem como, nem toda lesão ou prejuízo representa um dano indenizável – nem todo dano interessa ao direito.


Assim, tem-se que não são danos indenizáveis as lesões esperadas e decorrentes do próprio procedimento ou tratamento, visto que são legitimadas pelo direito, visto que decorrem do regular exercício da profissão. Não representam violações à saúde (integridade física) do paciente prejuízos como amputações ou retirada de órgãos, quando necessárias.


De outra banda, não são indenizáveis os danos decorrentes de circunstâncias incontroláveis e inesperadas, particulares do caso; e, em especial, quando a ciência não dispõe de técnica suficiente para solução, como é o caso da infecção hospitalar (septicemia), que eventualmente pode ser considerada como um fortuito.


Forçoso ponderar brevemente sobre a septicemia, posto que, ao seu redor, o debate jurisprudencial é intenso.


A título de exemplificação, no julgamento do REsp 1642307/RJ, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que “o hospital responde objetivamente pela infecção hospitalar, pois esta decorre do fato da internação e não da atividade médica em si.” Entrementes, existem diversos julgados afastando a responsabilidade objetiva dos hospitais, ou seja, uma vez não demonstrado o defeito na prestação do serviço não seria possível imputar a responsabilidade do hospital.


No REsp. nº 1704511, a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, afirmou que a responsabilidade dos hospitais, no que diz respeito à atuação dos profissionais contratados, é subjetiva, dependendo de demonstração da culpa do preposto, de forma que não é possível responsabilizar objetivamente o hospital – ou seja, o hospital responde pela culpa do profissional que a ele está vinculado.


No referido caso, o STJ manteve a decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul (TJRS), que afastou a responsabilidade de um hospital pela morte de paciente supostamente provocada por erro em procedimento pós-cirúrgico de troca de cateter, embora pudesse ter sido determinante para o óbito, não estava demonstrada nos autos. Conforme ementa:

4. A responsabilidade objetiva para o prestador de serviço, prevista no art. 14 do CDC, na hipótese de tratar-se de hospital, limita-se aos serviços relacionados ao estabelecimento empresarial, tais como estadia do paciente (internação e alimentação), instalações, equipamentos e serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia). 5. No processo não há peso, hierarquia ou tarifação prévia dos meios de prova, mas sim um contexto aberto e amplo em que a narrativa dos fatos deve encontrar embasamento nas variadas provas coligidas com o objetivo de convencer o julgador quanto à correta solução do conflito de interesses das partes .


Dito isto, não demonstrada que a infecção decorreu de uma conduta médica culposa, não seria possível a indenização dos prejuízos sofridos pelo paciente. Dito isto, demonstrada a negligência, imprudência ou imperícia do profissional, este pode ser considerado solidariamente responsável, em conjunto com o hospital, em casos de danos ao paciente, especificamente quando a sua conduta foi preponderante para a instalação da infecção – a exemplo dos casos de infecção hospitalar causados especificamente por um erro médico.
Em poucas palavras, o erro médico pode resultar em danos indenizáveis de diferentes naturezas: patrimoniais e morais, que devem ser reparados em sua integralidade ou compensados na sua devida proporção, respectivamente.


O dano patrimonial (dano emergente) implica uma diminuição direta e imediata nos interesses de aspecto econômico do consumidor-paciente. Os respectivos prejuízos devem ser indenizados de modo equivalente (art. 927, do CPC). Como exemplos de danos materiais destacam-se as despesas médico-hospitalares, tais como gastos com medicamentos, viagens, contratação de enfermeiros, compra de aparelhos.


Por outro lado, é possível que surja para o paciente, também, a pretensão de ver ressarcido o lucro frustrado em razão do erro (lucro cessante). Essa situação deve ser caracterizada através do impedimento de obtenção de provável incremento patrimonial. Por exemplo, em razão do erro médico, a vítima poderá ser afastada das atividades laborais ou empresariais que normalmente desempenha, resultando na perda de um ganho provável. Tal perda deve ser igualmente ressarcida, nos termos do art. 402, do Código Civil. E, para a fixação do quantum relativo aos lucros cessantes deve abranger o lapso temporal que medeia entre o evento danoso e a retomada das atividades.


O dano moral, ao seu turno, é a lesão indenizável sofrida pela pessoa natural em razão da violação de um direito da personalidade. No erro médico, geralmente, o direito violado é a incolumidade física, a saúde e/ou vida do paciente-consumidor. Este, impossível de ser reconstituído de forma específica, será geralmente ressarcido por um montante pecuniário a ser arbitrado pelo órgão julgador, e terá função precipuamente compensatória (pretium doloris).

4. O nexo de causalidade entre o fato antecedente e o fato consequente


Por fim, naturalmente, para que o dano seja indenizável o evento danoso deve ser consequência direta e imediata da conduta perpetrada pelo profissional. O nexo de causalidade é a relação de causa e efeito entre a conduta de agente (causa) e o dano sofrido pela vítima (consequência). Neste sentido, a conduta positiva ou negativa do médico deve ser determinante para a materialização do dano, isto é, deve ser a razão direta e imediata pela qual o dano existe.


O agente deverá indenizar um dano, ainda que também concorram outras causas, na medida em que tiver dado causa (art. 927, do CC/02). Se há um fato que concorre para dano, da vítima ou de terceiros, não significa que exclusão da responsabilidade civil é automática. É preciso investigar, em sentido lógico, a medida exata das causas e a indenização será fixada proporcional e adequadamente: excluem-se da responsabilidade civil do médico os danos causados pelo fato do próprio paciente ou de terceiros, na medida de sua causação.


Quando o Código de Defesa do Consumidor afirma que excluem a responsabilidade civil culpa exclusiva da vítima ou terceiros (art. 14, §3º, inciso II, do CDC), na verdade, quer explicar que, nos casos apontados, não existe relação de causalidade entre a prestação do serviço e o dano – a causa, é dizer, é diversa e não atribuída ao agente. Sendo assim o ato causador de dano, para elidir a responsabilidade, deve ser a única causa.


Nessa ambiência, também exclui a responsabilidade do médico, quando o dano decorrer de caso fortuito e a força maior, embora a Lei Consumerista não tenha previsto tais excludentes de maneira expressa. É que, por analogia, a regra disposta no art. 393, do Código Civil, “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.”

5. Obrigação de meio e resultado


Por tudo exposto é possível perceber que a relação entre médico e paciente é uma relação jurídica obrigacional. A doutrina e a jurisprudência, a seu modo, costumam classificar as obrigações em duas espécies conforme o objeto da prestação: a) obrigações de meio; b) obrigações de resultado.


Na obrigação de meio, a prestação devida é o comportamento adequado do devedor. É dizer, significa que o obrigado irá agir de forma prudente, diligente e utilizar-se das técnicas adequadas para a realização do objeto. Neste caso, o prestador de serviços médicos não garante o resultado esperado pelo paciente, mas estrita adequação de seu próprio comportamento ao teor da prestação que é devida.


Na obrigação de resultado, a outro giro, o prestador do objeto não se limita a prestar o serviço de forma adequada. Mais além: em uma obrigação de resultado, o objeto da obrigação é entrega do resultado prometido com a prestação do serviço – o médico, assim, deve garantir o sucesso do tratamento, a ser determinado conforme os termos avençados e prometidos.


Face a esta classificação, a obrigação de prestar serviços médicos é, em geral, de meio. A prestação adequada de um serviço se traduz através da utilização, por parte do profissional, da diligência, prudência e perícia necessárias para a realização da atividade. Sendo assim, em um tratamento oncológico, o médico não pode garantir o resultado, mas deve prestar o serviço com a higidez necessária e própria da prestação de seu serviço.


Em algumas circunstâncias, contudo, entende-se que a obrigação do profissional de medicina pode ser de resultado: é o caso de tratamentos estéticos. Nessas hipóteses, conforme entendimento reiterado do Superior Tribunal de Justiça, o profissional se obriga a entregar o resultado prometido, não sendo suficiente a higidez de sua atuação.


A importância prática desta classificação reside na presunção da culpa do prestador do serviço (juris tantum) . Vale dizer, quando a obrigação do médico for de resultado, presume-se a sua culpa, quando se verificar, no caso concreto, que não entregou o resultado ao qual se obrigou.


Apesar da presunção de sua culpa, nada impede que o profissional afaste sua responsabilidade demonstrando que o do fato danoso não ocorreu; que sua conduta não foi dolosa, negligente, imprudente ou imperita; que entre o evento danoso e a sua conduta não há causalidade, de modo que é perfeitamente possível, em sede de defesa, arguir culpa exclusiva da vítima, de terceiro, caso fortuito ou força maior (REsp. 236.708-MG).


Em resumo, a importância prática desta classificação, adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, observa-se que, nas obrigações de meio, incumbe à vítima demonstrar o dano e a culpa; enquanto nas obrigações de resultado, basta que demonstre o dano, traduzido no fato de que o médico não obteve o resultado prometido e contratado. Entretanto, a despeito de tudo esposado, o art. 1º, p.u. do Código de Ética Médica, dispõe que “a responsabilidade do médico é pessoal e não pode ser presumida”.


Texto por: Dr. João Flávio Vidal Wanderley
Advogado. Procurador do CRBM2. Mestre em Direito Civil. Especialista em Processo Civil. Especialista em Direito Administrativo, Licitações e Contratos Administrativos. Professor.